Pelo menos 3.317 alunos do ensino fundamental são incapazes de escrever textos curtos
Há nove anos morando numa fazenda nas proximidades de Itapoã, Matheus* repete o mesmo ritual durante quase 10 meses do ano: acorda por volta das 5h, coloca cadernos e livros na mochila, caminha durante 15 minutos até o ponto e vai de ônibus para a escola. Na sala de aula, um outro fenômeno se repete nessa quase década. Ele olha o quadro negro ou passeia pelas páginas dos livros e não entende o que está escrito. Também não consegue escrever nada além do próprio nome. Ele faz parte da rede de ensino há nove anos. E reprovou oito vezes.Matheus tem 15 anos e deveria estar no último ano ensino fundamental. O problema é que, até hoje, não sabe ler nem escrever. Matriculado na 2ª série, já ouviu todo tipo de ofensa. Até mesmo de alguns professores — aqueles que deveriam ajudá-lo a enfrentar os desafios da aprendizagem. “Antes eu estudava numa escola rural e a professora me chamava de burro e me colocava grudado no quadro negro”, conta o menino. A solução só veio agora. Matriculado na Escola Classe 2 do Paranoá, descobriram que o garoto tinha problema para enxergar. Hoje, com óculos no rosto, ele sonha recuperar o tempo perdido. “Nessa escola, todo mundo me trata bem”, afirma.A história impressiona. Mas chama ainda mais atenção o fato de ele não estar sozinho. Pelo menos outros 3.317 meninos e meninas matriculados entre a 1ª e a 3ª séries do ensino fundamental do DF, com idade a partir de 9 anos, são incapazes de escrever um texto curto, completar frases ou assinalar questões de múltipla escolha que dependem da interpretação de poucas frases (veja o quadro). Eles foram considerados analfabetos após fazer o teste de diagnóstico do Instituto Ayrton Senna, responsável pelos programas Se Liga e Acelera. A prova foi aplicada a 12.850 estudantes dessas séries entre 20 e 24 de outubro.“É claro que o número é alto. Não há como questionar esse fato, mas estava dentro do previsto”, avalia o secretário de Educação do DF, José Luiz Valente. “A defasagem idade-série e a repetência são os principais problemas que enfrentamos.” O universo de alunos testados diz respeito à indicação das regionais de ensino de meninos e meninas que estão com distorção idade-série. Ou seja, com pelo menos dois anos atrasados para a série em que estão matriculados. Dos quase 13 mil estudantes com defasagem, 25% não sabem ler ou escrever. E o número pode ser maior. Os dados da distorção idade-série dependem, de acordo com a secretaria, do fim do ano para que as reprovações deste ano sejam contabilizadas.ChanceA descoberta do déficit de aprendizagem dessas crianças, em vez de trazer preconceito ou exclusão, pode ter sido a chance de cidadania. O teste foi o primeiro passo para que Matheus seja matriculado no Se Liga, numa parceria da Secretaria de Educação do DF com o Instituto Ayrton Senna. Será o primeiro ano do programa no DF. “A forma de conduzir o aprendizado dos alunos é diferenciada e parte do aproveitamento da vida desses estudantes”, afirma o secretário. “A idéia é que toda a rede seja englobada para que não tenhamos mais alunos analfabetos.”O analfabetismo é o maior vilão da educação pública no Brasil. Ele pune as crianças com a repetência, o difícil recomeço todos os anos, a insegurança e a baixa auto-estima. Michele* não levanta a cabeça ao conversar com os coleguinhas. Na rua, não consegue olhar nos olhos das pessoas. Tudo porque tem vergonha. Com 11 anos, não sabe escrever nem o próprio nome.“O mais difícil é copiar o â-bêcê do quadro”, reclama. A menina, moradora do Paranoá, deveria estar na 5ª série do ensino fundamental. Está na primeira porque desde que entrou na escola, com 7 anos, nunca teve o prazer de passar de ano e continuar com os mesmos coleguinhas. Aluna da Escola Classe 2, até hoje ninguém conseguiu saber a causa do atraso da menina. O mesmo ocorre com Giovana*, de 11 anos. As duas irmãs dela, de 10 e 8 anos, já ultrapassaram-na na escola. Ano passado, depois de três reprovações, ela passou. Está na 2ª série. Giovana sonha entrar no universo das letras, dos livros e dos cadernos. Até agora, esse mundo é desconhecido. “Cansei de só ver figuras.”
*Nomes trocados para preservar a identidade das crianças
Conceitos
Habilidades de leitura/escrita
Analfabeto – Corresponde à condição dos que não conseguem realizar tarefas simples que envolvem decodificação de palavras.Rudimentar – Corresponde à capacidade de localizar informações explícitas em textos curtos, um anúncio ou pequena carta.
Básico – Corresponde à capacidade de localizar informações em textos um pouco mais extensos, podendo realizar pequenas inferências.
Pleno – Corresponde à capacidade de ler textos longos, relacionando partes de um texto, realizando inferências e sínteses.
Habilidades de matemática
Analfabeto – Corresponde à condição dos que não conseguem realizar tarefas elementares com números, como ler o preço de um produto ou anotar um número de telefone.Rudimentar – Corresponde à capacidade de ler números em contextos específicos como preço, horário, números de telefone etc.
Básico – Corresponde à capacidade de ler números, resolver problemas simples envolvendo soma, subtração e multiplicação, ou mesmo identificar proporcionalidades.
Pleno – Corresponde à capacidade de controlar uma estratégia na resolução de problemas complexos, que exigem a elaboração e a execução de uma série de operações relacionadas entre si, apresentando, ainda, familiaridades com mapas e gráficos e outras representações matemáticas Fonte: Instituto Ayrton Senna
Quadro negro não basta
Em vez de aprenderem o a-bê-cê escrito no quadro negro, as crianças ouvem música, fazem projetos de ciência e até cozinham bolo de banana no refeitório. No meio de cada atividade, a lição flui e o aprendizado se torna natural. O projeto, sucesso em Goiás, Pernambuco, Paraíba, Sergipe e Tocantins, precisa de seis meses para que meninos e meninas saibam ler e fazer as primeiras contas. Os benefícios vão além de ensinar crianças e adolescentes a escrever e colocá-las de volta no rumo do aprendizado.Além da pedagogia, o número de alunos é outro diferencial. De acordo com o diretor Wandeir Silva, da Escola Classe 2 do Paranoá, as turmas na escola têm uma média de 35 alunos. No Se Liga e no Acelera — que atende meninos que estão com defasagem mas sabem ler e escrever — o número cai para 20. “É claro que quando a sala de aula está cheia os professores e coordenadores enfrentam mais dificuldade em ensinar”, argumenta. A escola desenvolveu este ano um amplo programa de incentivo à leitura.De acordo com o Instituto Ayrton Senna, 93% dos 53.082 alunos atendidos pelo Se Liga no ano passado foram alfabetizados. Os alunos estão distribuídos pelas redes de ensino de 527 municípios e contaram com o trabalho de 4.280 educadores. Desde a implementação, em 2001, o Se Liga atendeu a 331.897 crianças de 403 municípios.
Erika Klingl - Correio Braziliense
Publicação: 05/12/2008